domingo, 12 de dezembro de 2010

Um conto de Natal

Olá!

Gosto muito desta versão da história, do contista estadunidense O. Henry.

A referência bibliográfica está no final.

Outra versão belíssima é encontrada no livro O dom da história, de Clarissa Pinkola Estes, Editora Rocco.

Espero que goste.

O presente dos magos[1]

O. Henry

Um dólar e oitenta e sete centavos. Isso era tudo. E dessa quantia, um terço era composto de moedinhas de um centavo. Moedinhas poupadas uma a uma pechinchando com o homem do armazém, com o verdureiro, com o açougueiro, até que suas faces ardessem diante de uma muda acusação de parcimônia que tal atitude provocava. Por três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E o dia seguinte era o dia de Natal.

Evidentemente, nada lhe restava fazer senão atirar-se sobre o pequeno e gasto sofá e chorar. E foi o que Della fez. O que vem provocar a reflexão de que a vida é feita de lágrimas, soluços e sorrisos, com predomínio dos soluços.

Enquanto a dona da casa vai, gradativamente, passando da primeira para a segunda fase, examinemos rapidamente o seu lar. Um apartamento mobiliado, a oito dólares por semana. O aposento não carecia apropriadamente de uma descrição, mas era inegável que merecia a assistência do departamento de mendicância.

No vestíbulo do andar térreo havia uma caixa de correio que jamais recebia cartas e um botão de campainha que não parecia ter sido algum dia apertado por um dedo humano. Completando esse conjunto via-se um cartão onde estava impresso o nome “Mr. James Dillingham Young”.

O “Dillingham” fora posto ali durante um anterior período de prosperidade, quando o seu dono recebia trinta dólares por semana. Agora que o seu ordenado encolhera para vinte, as letras do “Dillingham” pareciam apagadas, como se estivessem pensando seriamente em se contrair para um humilde e despretensioso D. Contudo, sempre que Mr. James Dilingham Young voltava do trabalho e subia para o seu apartamento, era chamado de “Jim” e apertado carinhosamente nos braços de Mrs. James Dillingham Young, que já foi apresentada ao leitor com o nome de Della. O que é um fato bastante auspicioso.

Della parou de chorar e recompôs as faces com um pouco de pó. Depois postou-se a janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato cinzento que caminhava sobre um muro cinzento de um cinzento pátio. O dia seguinte seria o dia de Natal e ela contava com apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar um presente para Jim. Viera economizando todos os tostões que lhe fora possível nos últimos meses, para afinal chegar àquele resultado. Vinte dólares por semana não dão para muita coisa. As despesas tinham sido maiores do que ela calculara. Sempre eram. Apenas $1,87 com que comprar um presente para Jim, o seu Jim. Passara muitas horas agradáveis planejando um presente bonito para ele. Algo belo, raro, genuíno – alguma coisa que fosse digna de pertencer a Jim.

Havia um espelho encaixado no estreito espaço entre duas janelas do aposento. Talvez o leitor já tenha tido oportunidade de ver um espelho desse tipo num apartamento de oito dólares semanais. A uma pessoa muito ágil e muito esbelta é possível, observando sua imagem numa rápida sucessão de faixas longitudinais, obter uma idéia bastante aproximada de sua aparência. Della, que era muito delgada, tornara-se mestra nessa arte.

De súbito, deixou a janela precipitadamente e postou-se diante do espelho. Seus olhos refulgiam, mas as faces tinham perdido toda a cor no espaço de vinte segundos. Rapidamente ela soltou os cabelos e deixou-os cair em todo o seu comprimento.

Bem, havia duas possessões que eram o grande orgulho do casal Dillingham Young. Uma delas era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai e a seu avô. A outra era o cabelo de Della. Se a rainha de Sabá tivesse sido a inquilina do apartamento do outro lado da área de arejamento, Della teria estendido um dia seus cabelos à janela, para secarem, com o único fito de ofuscar o brilho das jóias e das dádivas de Sua Majestade. E se o rei Salomão tivesse sido um dia o síndico do prédio, com todos os seus tesouros empilhados no porão, Jim teria puxado do seu relógio toda vez que passasse por ele, só para vê-lo arrancar as barbas de inveja.

E agora os lindos cabelos de Della despejavam-se em ondas brilhantes pelas suas espáduas, como uma cascata de águas castanhas. Chegavam-lhe abaixo dos joelhos e compunham como que um manto. E então ela os prendeu de novo, com movimentos rápidos e nervosos. Houve um momento em que vacilou e ficou parada por um instante, enquanto uma ou duas lágrimas iam salpicar o gasto tapete vermelho.

Para os seus ombros voou o velho casaco marrom, para sua cabeça o velho chapéu também marrom.

Arrepanhando as saias e com os olhos ainda faiscando, ela lançou-se para a porta e desceu agitadamente as escadas até a rua.

No local onde parou, a tabuleta dizia: “Mme. Sofronie. Compram-se cabelos de todos os tipos”. Della subiu correndo um lance de escada e parou, ofegante. Madame – imensa, branca demais, hostil – não correspondia ao “Sofronie”.

-- A senhora quer comprar o meu cabelo? – indagou Della.

-- Eu compro cabelos, -- declarou Madame. – Tire o chapéu e deixe-me dar uma olhada para ver o seu aspecto.

Soltou a cascata escura.

-- Vinte dólares, -- falou Madame, sopesando com a mão experiente as volumosas madeixas.

-- Dê-me o dinheiro, depressa! – disse Della.

Oh, as duas horas seguintes voaram em asas cor de rosa. O leitor pode ignorar a bisonha metáfora. Ela esmiuçava todas as lojas em busca do presente de Jim.

Encontrou-o, afinal. Era evidente que tinha sido feito para ele e mais ninguém. Não havia nada que se assemelhasse em nenhuma outra loja, e ela havia esquadrinhado todas, de alto a baixo. Tratava-se de uma corrente de platina, de desenho simples e discreto, cujo valor era proclamado pelo próprio material de que era feita e não por enganosos ornamentos – como devem ser todas as coisas boas. Era até mesmo digna do Relógio. Parecia-se com ele. Modéstia e valor -- a descrição aplicava-se a ambos. Custou-lhe vinte e um dólares, e ela voltou correndo para casa com os oitenta e sete centavos restantes. Com aquela corrente no seu relógio, Jim poderia mostrar-se apropriadamente ansioso por olhar as horas onde quer que estivesse. Embora fosse uma peça magnífica, ele às vezes consultava-o disfarçadamente por causa da velha tira de couro que usava à guisa de corrente.

Quando Della chegou a casa seu entusiasmo arrefeceu um pouco, cedendo lugar à prudência e à razão. Foi buscar seus ferros de frisar, acendeu a chama do gás e deu início à função de reparar os danos causados pela generosidade aliada ao amor. O que constitui sempre uma tarefa imensurável, caro leitor – uma tarefa verdadeiramente titânica.

Dentro de quarenta minutos sua cabeça estava coberta de minúsculos caracóis, o que a fazia parecer encantadoramente com um travesso garoto de escola. Ela contemplou sua imagem no espelho por longo tempo, atentamente, com ar crítico.

“Se Jim não me matar logo de entrada”, falou consigo mesma, “dirá que estou parecida com uma corista de Coney Island. Mas que poderia eu fazer... oh, que poderia eu fazer com um dólar e oitenta e sete centavos?”

Às sete horas o café estava preparado e a frigideira encostada no fundo do fogão, já aquecida e pronta para fritar as costeletas.

Jim nunca chegava atrasado. Com a corrente enrolada na mão, Della sentou-se junto à mesa que ficava próxima da porta por onde ele sempre entrava. Logo ouviu os seus passos, subindo o primeiro lance da escada lá embaixo, e por um rápido instante ela empalideceu. Tinha o hábito de murmurar pequenas e mudas preces a respeito das coisas mais corriqueiras, e agora sussurrou: “Oh, Deus, faça com que ele ainda me ache bonita!”

A porta abriu-se e Jim entrou e fechou-a. Parecia muito magro e tinha um ar muito sério. Pobre rapaz, tinha apenas vinte e dois anos – e já com encargos de família! Precisava de um novo sobretudo e estava sem luvas.

Jim parou do lado de dentro da porta, imóvel como um perdigueiro ao farejar a caça. Seus olhos estavam fixos em Della, e hvia nelas uma expressão que ela não sabia traduzir e que a aterrorizava. Não era de irritação, nem de surpresa, nem de desaprovação, nem de horror – nenhuma das reações para as quais ela se havia preparado. Ele limitava-se a contempla-la fixamente, com aquela peculiar expressão no seu rosto.

Della contornou a mesa e caminhou para ele.

-- Jim querido! – exclamou. – Não me olhe dessa maneira. Cortei e vendi meus cabelos porque não suportava a idéia de deixar passar o Natal sem lhe dar um presente. Voltarão a crescer de novo – você não se importa, não é mesmo? Tive de fazer isso. Meu cabelo cresce com uma rapidez incrível. Diga “Feliz Natal”, Jim, e alegremo-nos com isso. Você não imagina que presente lindo, maravilhoso, comprei para você.

-- Você cortou os cabelos? – perguntou Jim laboriosamente, como se ainda não se tivesse convencido desse fato evidente mesmo após o mais penoso raciocínio.

-- Cortei-os e os vendi. – declarou Della. – Você não continua gostando de mim da mesma maneira? Agora sou apenas eu sem os meus cabelos, não é?

Jim correu os olhos pelo aposento, curiosamente.

-- Não adianta procura-los, -- disse Della. – Foram vendidos, já lhe disse , vendidos e levados embora. Esta é a Noite de Natal, rapaz. Seja bom para mim, pois foi por sua causa que fiz isso. Talvez os fios dos meus cabelos pudessem ser contados, -- continuou ela com súbita doçura e seriedade, -- mas ninguém jamais poderá calcular a intensidade do meu amor por você. Posso servir as costeletas, Jim?

Deixando o seu estado de transe, Jim pareceu voltar à realidade rapidamente. Envolveu sua Della nos braços. Por dez segundos examinemos com discreta atenção algum objeto inconsequente, do outro lado do aposento. Oito dólares por semana ou um milhão por ano – Que diferença faz? Os matemáticos e os perspicazes dariam ao leitor a resposta errada. Os magos trouxeram dádivas valiosas, mas essa não fazia parte delas. Esta obscura afirmação será esclarecida, alguns parágrafos adiante.

Jim tirou um embrulho do bolso do sobretudo e jogou-o em cima da mesa.

-- Não se engane a meu respeito, Dell, -- falou ele. – Não creio que haja algum penteado ou xampu capaz de me fazer gostar menos da minha namorada. Mas se você desembrulhar esse pacote verá a razão por que fiquei desnorteado a princípio.

Dedos brancos e ágeis desataram o barbante e abriram o embrulho. E logo uma exclamação de extasiada alegria e em seguida – oh, infortúnio! – uma rápida e feminia mudança para lágrimas e gemidos convulsivos, que necessitaram do emprego imediato de toda a capacidade de consolo do chefe da casa.

Pois ali estavam As travessas – o par de pentes que Della namorara durante tanto tempo numa vitrina da Broadway. Lindas travessas de tartaruga legítima, encrustadas de pedra e no tom exato que convinha aos cabelos desaparecidos. Eram travessas de alto preço, ela sabia, e seu coração as havia cobiçado ardentemente sem a menor esperança de obtê-las. E agora elas eram suas, mas as tranças que os ambicionados ornamentos iriam enfeitar não existiam mais.

Não obstante, apertou-as de encontro ao peito e por fim foi-lhe possível erguer o rosto com os olhos úmidos e dizer com um sorriso:

-- Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!

E então ela saltou como um gato escaldado e exclamou:

-- Oh, oh!

Jim ainda não tinha visto o seu lindo presente! Estendeu-o para ele vivamente, na palma da mão. O brilho fosco do precioso metal parecia faiscar com os reflexos de seu espírito ardente e luminoso.

-- Não é uma beleza, Jim? Rebusquei a cidade inteira para encontra-lo. Agora você terá de olhar as horas uma centena de vezes por dia. Dê-me o relógio, quero ver como ficará com a corrente.

Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair sobre o sofá e colocou as mãos sob a nuca, sorrindo.

-- Dell, -- disse ele, -- vamos guardar nossos presentes de Natal, por enquanto. São lindos demais para serem usados no momento. Eu vendi o relógio para poder comprar suas travessas. Que tal se servisse agora as costeletas?

Os magos, como o leitor não ignora, eram homens sábios, maravilhosamente sábios, que levaram dádivas ao Menino na manjedoura. Foram eles que inventaram a arte de dar presentes de Natal. Sendo sábios, suas dádivas eram sem dúvida muito sábias também, havendo provavelmente o direito de troca em caso de duplicata. E aqui acabei de relatar canhestramente a desenxabida história de duas crianças tolas num apartamento, que com grande insensatez sacrificaram em favor uma da outra os mais preciosos tesouros do seu lar. Mas, numa última palavra aos sábios de hoje, será conveniente acrescentar que de todos os que tem dado presentes, aqueles dois eram os mais sábios. De todos os que dão e recebem dádivas, os que agem como aqueles dois são os mais sábios. Em qualquer lugar do mundo serão os mais sábios. São eles os magos.



[1] HENRY, O. A última folha. Belo Horizonte, Itatiaia, 1973. p.7-12

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Alimentar com língua

Olá!
Ouvi esta história pela primeira vez na abertura do VI Festival de Contação de Histórias, em 06 de outubro de 2010, na Biblioteca Hans Christian Andersen. Folheando um livro, descobri que esta história já fora registrada numa antologia. Reproduzo-a aqui, na estreia da seção Baú de Histórias.
Bibliotecária que sou, primeiro deixo a referência, para buscas posteriores:

CARTER, Angela (autora); MACHADO, Luciano Vieira (tradutor).
103 contos de fadas. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. p.242-3

Alimentar com língua (suaíli)

Um sultão vivia com a mulher no seu palácio, mas a mulher era infeliz. Ela ficava cada dia mais magra e mais apática. Na mesma cidade havia um homem cuja mulher era saudável, bem nutrida e feliz. Quando o sultão ouviu isso, chamou o homem pobre à corte e lhe perguntou qual era o seu segredo. O homem pobre disse: “Muito simples. Eu a alimento com língua”. O sultão mandou chamar o açougueiro imediatamente e lhe disse que as línguas de todos os animais abatidos na cidade deviam ser vendidas a ele, o sultão, e a mais ninguém. O açougueiro fez uma mesura e foi embora. Todo dia ele enviava ao palácio as línguas de todos os animais. O sultão ordenou que o seu cozinheiro as cozinhasse, fritasse, assasse e salgasse de todas as maneiras possíveis, e que preparasse cada um dos pratos do livro de receitas. A rainha tinha que comê-los, três ou quatro vezes por dia – mas a coisa não funcionou. Ela ficava cada vez mais magra e mais adoentada. O sultão ordenou ao homem pobre que trocasse sua esposa pela dele – e o homem concordou com certa relutância. Ele levou a rainha magra para casa e enviou a sua esposa para o palácio. Infelizmente, a esposa do homem pobre foi ficando cada dia mais magra, apesar da boa comida que o sultão lhe oferecia. Era evidente que ela não podia ficar bem num palácio.

Ao chegar em casa a noite, o homem pobre saudava sua nova (real) esposa, contava-lhe o que tinha visto, principalmente as coisas engraçadas, depois lhe contava histórias que a faziam se torcer de rir. Em seguida pegava o banjo e cantava para ela, ele conhecia diversas canções. Ele ficava acordado até tarde da noite, brincava com ela e se divertia. E então pronto! A rainha ganhou peso em poucas semanas, ficou com ótimo aspecto, a pele brilhante e lisa como a de uma menina. E ela passava o dia sorrindo, lembrando-se das coisas engraçadas que o seu novo marido lhe contara. Quando o sultão mandou que ela voltasse, ela se recusou a ir. Então o sultão foi buscá-la e a encontrou muito mudada e feliz. E lhe perguntou o que o homem pobre fizera com ela, e a rainha lhe contou. Então ele entendeu o significado de alimentar com língua.